Zaira era realmente uma
cigana. De alguma forma — forma essa que ninguém havia explicado claramente
para os três visitantes —, ela conseguira autorização para morar nas Terras de
Grigorii. Mas por que daquela tensão no ar com sua chegada? Por que Naomo havia
deixado de considerá-la uma amiga? Ela pareceu tão simpática com as meninas!
Quando Gnoa e seus
ajudantes terminaram de limpar a mesa do jantar, Zaira foi logo chamando o
grupo de duendes músicos para se juntarem à ela perto da fogueira. Disse que
gostaria muito de ensinar Judite e Valentina como dançar feito seu povo. As
duas meninas, que a princípio perceberam que havia algo estranho por ali,
acabaram por esquecer dessa sensação e entraram na brincadeira com a moça.
Alguns duendes também estavam participando, fosse tocando seus instrumentos,
fosse dançando em volta da fogueira. Apenas alguns deles permaneceram fora da
festa, mantendo um ar de preocupação. Naomo era um deles.
Enquanto as meninas
dançavam com Zaira, Dante saiu de mansinho e foi atrás do amigo esverdeado.
Encontrou o pequeno sozinho na cozinha, enxugando tijelas. Esse levou um baita
susto quando percebeu Dante tão próximo, derrubando uma das tijelas que estava
em suas mãos.
— Por mil fadas azuis!
Você quase me mata, rapaz...
— Desculpe. — respondeu
Dante segurando o riso e se abaixando para pegar os pedaços da peça quebrada. —
Eu chamei antes de entrar, não ouviu?
— Mesmo? Não ouvi.
Talvez esteja perdido demais em meus pensamentos… — respondeu Naomo e
suspirou.
— Olha Naomo, na
verdade eu queria saber o que aconteceu por aqui. Por que vocês se sentiram tão
incomodados com a presença da cigana? Quer dizer, ela era sua amiga, não?
— Era. Mas sabe como é,
somos de natureza diferentes, e ela é um tanto geniosa… Acabamos por nos
afastar.
Dante, que agora estava
sentado em um dos banquinhos ajudando Naomo com as tarefas domésticas, arqueou
as sobrancelhas e acentiu, mas sem acreditar nas declarações do goblin.
— Sabe, Dante… Às
vezes, quando nós passamos por algum trauma na vida, nós mudamos. Pode ser para
melhor, tirando desse trauma um amadurecimento, ou pra pior, vendo nesse trauma
um motivo de revolta. Zaira se revoltou e mudou. Não é mais a mesma pessoa que
se apresentou para nós e que aprendemos a gostar.
— Mas que trauma foi
esse? Por que ela se revoltou?
Naomo espiou lá fora
pela janela, conferindo que ninguém mais estivesse por perto. E então disse
baixinho para o amigo:
— É uma longa história,
não terei tempo de te explicar agora. Mas ouça bem o que digo: não fique
sozinho com ela, está bem? Jamais! Ela tem planos maldosos contra rapazes
humanos. Apenas fique longe dela por essa noite, que amanhã te contarei tudo
que quiser saber.
A princípio o rapaz se
sentiu um tanto incrédulo com aquela informação. O que Zaira poderia fazer de
tão mau contra ele? Parecia bobagem e exagero de amigo com o coração partido.
Mas, por outro lado, a expressão de Naomo ao pedir que ele ficasse longe da
cigana pareceu sincera demais para levantar dúvidas. Ali havia mais do que uma
simples desavença entre espécies.
— Tudo bem. Mas e
minhas irmãs? Ela está ensinando minhas irmãs a dançarem… Devo me preocupar?
— Não, as garotas não
correm perigo. Apenas cuide de si mesmo e não se esqueça: não fique sozinho com
ela!
O resto da noite foi
regado de alegria. As meninas dançaram e se divertiram bastante. Os duendes que
estavam participando da festa também pareceram nem se lembrar de qualquer
problema que Zaira possa ter causado. Estava tudo em paz e harmonia, como nos
velhos tempos.
Dante, por outro lado,
preferiu ficar sentado nos degraus da varanda, apenas observando. As palavras
de Naomo não paravam de martelar em sua cabeça, e embora a curiosidade fosse
grande, ele não poderia correr risco de sabe-se lá o quê acontecer com
ele. Quem cuidaria das meninas? Quem as levaria de volta para casa?
Quando a maioria dos
duendes já estava se encostando pelas árvores de sono, Gnoa decidiu acabar com
a festa e mandar todos para a cama. Zaira se despediu das meninas, exaltando o
quanto estava feliz por conhecê-las.
— Fazia muito tempo que
eu não encontrava com pessoas como nós. Vocês alegraram meu dia. Muito
obrigada!
— Nós que ficamos
felizes em te conhecer. — respondeu Judite, com a elegância de uma dama. —
Também agradecemos a aula de dança. É encantador te ver dançar!
— Mas vocês também
dançaram lindamente! Só não entendi a razão de Dante não ter participado de
nossa festa…
As três então olharam
para a escada, onde o rapaz continuava sentado, dessa vez acompanhado por Gnoa
e outro pequeno duende.
— Ah, ele deve estar
cansado. Antes de virmos para nas Terras de Grigorii, brincamos de pega por
muito tempo em um parque perto de casa. — respondeu Valentina. — Amanhã ele
estará mais animado.
A cigana sorriu e se
despediu das meninas antes de ir embora, acenando também para Gnoa e Dante, que
corresponderam ao gesto com pouca empolgação. E antes que as meninas chegassem
até eles, Gnoa falou suas últimas palavras para Dante:
— Naomo tem razão.
Deixe passar essa noite que amanhã contaremos tudo a você. Agora vamos entrar e
descansar.
Como Dante era grande
demais para caber em uma das caminhas, ele e Naomo improvisaram um colchão
maior de folhagens na cozinha para que o rapaz pudesse dormir. E embora naquele
momento o quarto contasse com apenas uma caminha vaga, Naomo foi para a cozinha
fazer companhia a Dante, cedendo sua cama para uma das meninas.
Na verdade, seu
objetivo principal nem era exatamente a companhia… Naomo tinha medo que Zaira
voltasse. Gnoa pediu para que o filho ficasse sempre alerta, e a qualquer sinal
de perigo, batesse o sino que todos desceriam correndo em socorro.
Dante tentou, fez mil
perguntas sobre a cigana ao amigo antes que caíssem no sono, mas esse nada
respondeu. E como o dia havia sido cheio de surpresas, estavam todos cansados e não demorou para que esse sono chegasse.
A madrugada chegou. No
chalé só se ouvia alguns roncos. Do lado de fora, grilos, corujas e morcegos
faziam sua festa noturna. Dante, que não estava conseguindo dormir muito bem em
razão dos roncos de Naomo, decidiu levantar para fazer xixi. Bem sonolento,
procurou um banheiro pelas portas visíveis na cozinha. Nada. Encontrou apenas
armários.
— Mas aonde é que essas
criaturas fazem suas necessidades? — perguntou para si mesmo enquanto decidia
se valeria a pena acordar o goblin para fazer essa mesma pergunta.
Decidiu ir lá para fora
e fazer xixi em um matinho qualquer. Claro, era madrugada, estavam todos
dormindo, que mal havia nisso?
Quando ele saiu, Naomo
acordou com o barulho da porta, mas o sono era tão grande que ele nem se mexeu.
Continuou deitado, com os olhos fechados e pensando em coisas boas, buscando
retornar ao seu mundo dos sonhos. Até que algo o despertou.
— Dante!
O goblin levantou e
espiou pela janela. Enxergou o rapaz atrás de uma moita e se tranquilizou.
Encostou a cabeça na mesma janela para esperá-lo, e quando estava quase
dormindo em pé, viu Zaira se aproximar de Dante.
Naomo paralizou. Queria
sair correndo e espantar a moça, mas não conseguia sair do lugar. Queria
gritar, mas sua voz estava presa. Queria bater o sino, mas o cordão estava
longe demais.
— Minha fadinha
colorida! Mamãe… Mamãe… Ela está aqui, mamãe… — foi o máximo que conseguiu
sussurrar.
Talvez por algum sexto
sentido especial das mães (mesmo as adotivas), Gnoa desceu as escadas nesse
exato momento.
— O que está fazendo na
janela, querido? E cadê o rapaz?
Naomo apenas apontou
para fora, ainda sem conseguir dizer uma palavra. Gnoa se aproximou a tempo de
ver Dante indo embora com Zaira.
— Por Grigorii! — disse
Gnoa com espanto, enquanto corria até o sino e o tocava com força. — Como
isso foi acontecer? Como pudemos deixar isso acontecer?
Ao ouvir o sino, todos
os duendes começaram a descer do quarto. Valentina e Judite desceram por último,
muito sonolentas e sem entender o que aquele sino poderia significar.
— Rápido, crianças! —
ordenou Gnoa com voz de comando. — Dante! Zaira! Procurar! Já!
E então todas as
pequenas criaturas saíram correndo do chalé, se dividindo pelos arredores em busca
do rapaz. As meninas, que passaram o tempo todo se divertindo com Zaira e não
faziam ideia do que poderia estar acontecendo, se sentaram na cozinha esperando
uma explicação. Naomo, que ainda se encontrava em estado de choque por não ter
conseguido fazer nada para salvar o rapaz, se sentou com elas. E então, Gnoa,
que estava esquentando água para fazer um chá, decidiu contar para as meninas
que Dante estava em perigo.
— Meninas, é o
seguinte: Zaira tem planos perigosos para Dante. Se vocês querem ver o irmão de
vocês novamente, devemos encontrá-los o mais rápido possível.
As meninas
estremeceram, ainda sem entender direito o que estava acontecendo. Judite
perguntou que planos seriam aqueles e teve como resposta que aquela era uma
longa história que não precisava ser contada no momento. Precisavam apenas
torcer para que os duendes encontrassem os dois naquela busca, senão as coisas
se complicariam.
Esperaram por um bom
tempo na cozinha, tomando chá e tentando manter a calma. Quando o sol começou a
nascer, os grupos de duendes que haviam saído em busca de Dante começaram a
voltar. Não encontraram nada, nem ao menos uma trilha que pudessem seguir.
Zaira era esperta. As meninas, vendo que o irmão não voltara com as pequenas
criaturas, começaram a chorar.
— Meninas, não se
desesperem! — falou Gnoa. — Ainda há uma esperança. Embora não seja de nosso
costume apelar para nosso guardião, acredito que as circunstâncias pedem
medidas maiores. Até porquê foi ele quem autorizou Zaira a viver aqui… Parte
dessa confusão é culpa dele!
— Mas, mãe… —
espantou-se Naomo, que já estava melhorando do estado de choque. — Como vamos
mandar as meninas para a caverna de Grigorii assim? Não é perigoso?
— Perigoso por qual
razão? Oras! Elas têm um bom motivo para pedir socorro. É isso ou nada; se não
forem atrás de Grigorii, podem esquecer o irmão para sempre!
— Nós vamos. — falou
Valentina, sem nem precisar ouvir mais detalhes sobre a tal caverna e o tal
guardião. Tudo que ela mais queria naquele momento era salvar o irmão do que
quer que fosse, independente do que fosse necessário para isso.
— Vocês têm certeza? —
perguntou um outro duende que estava por perto, ouvindo a conversa.
— Temos. — foi Judite
quem respondeu dessa vez. — Não podemos nem pensar em voltar para casa sem
nosso irmão. Faremos o que for preciso para salvá-lo. Onde podemos encontrar
Grigorii?
— Venham. Nós vamos
desenhar um mapa para vocês. Não podemos ir junto, mas vamos explicar certinho
como chegar na caverna. — respondeu o mesmo duende, pegando as mãos das meninas
e levando-as até a mesa da varanda.
Nenhum comentário:
Postar um comentário